Povos Indígenas e a COP30: Guardiões da Terra, Vozes para o Futuro
Carta de Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas do Brasil

Neste mês celebramos duas datas de profundo simbolismo: o Dia da Amazônia no Brasil e o Dia Internacional da Mulher Indígena. Essa coincidência não é apenas uma marca no calendário — é um lembrete de que o futuro do planeta está intrinsecamente ligado às vozes e aos direitos dos povos indígenas. Escrevo a partir da experiência coletiva do Círculo dos Povos da Presidência da COP30 e, em particular, da Comissão Internacional Indígena.
Existem cerca de 476 milhões de indígenas no mundo. Embora representem apenas 6% da população global, são responsáveis por proteger e gerir centenas de milhões de hectares de terras, resguardando grande parte da biodiversidade que ainda resiste. Quase 40% das florestas intactas do planeta estão em territórios indígenas, onde as taxas de desmatamento são sistematicamente menores do que em áreas protegidas pelo próprio Estado. A evidência é clara: onde os direitos territoriais indígenas são respeitados, o desmatamento recua; onde são negados, a destruição avança.
Os povos indígenas não são apenas defensores ambientais. São guardiões de culturas milenares, portadores de saberes, modos de vida e valores que asseguram a continuidade das florestas, rios e biodiversidade. Como escreveu o embaixador André Corrêa do Lago em sua primeira carta, a humanidade precisa regenerar sua relação com a natureza. Para isso, é essencial conjugar o melhor da ciência e da tecnologia com a sabedoria ancestral, inaugurando um novo paradigma de reconexão entre o ser humano e a natureza.
Ampliar a participação e a escuta qualificada
No Brasil, a criação do primeiro Ministério dos Povos Indígenas representou um marco histórico. Pela primeira vez, têm ocupado espaços importantes, influindo diretamente nos processos de tomada de decisão. Essa experiência já se traduz em avanços na elaboração e implementação de políticas públicas e, por consequência, em uma colaboração mais direta na proteção de florestas e territórios essenciais para a manutenção do clima. Assim, realizar a COP30 no Brasil e na Amazônia é uma forma de multiplicar essa experiência.
Mas os desafios persistem. Embora a Convenção do Clima tenha reconhecido, em 2015, a importância dos conhecimentos tradicionais com a criação da Plataforma de Povos Indígenas e Comunidades Locais, a participação indígena ainda é limitada.
No intuito de termos a COP mais diversa e plural de todos os tempos e com foco em soluções efetivas para as metas globais que assumimos, é necessário fortalecer a participação das organizações indígenas por meio de credenciais próprias e em maior quantidade.
Para além das credenciais das organizações, via de regra limitadas, convidamos os demais países a adotarem uma prática já realizada pelo Brasil há vários anos: a de incorporar lideranças indígenas em suas delegações nacionais.
Já temos o compromisso de receber todas essas lideranças, com a criação de um importante espaço de alojamento: a Aldeia COP. Garantir que a COP30 no Brasil entre para a história como a conferência com a maior participação indígena é mais um passo importante em nossa defesa do multilateralismo.
Aldeando o livro de regras em tempos de emergência climática
O chamado “Livro de Regras” do Acordo de Paris está concluído, mas pode e deve ser enriquecido. As contribuições indígenas — especialmente na definição de indicadores globais de adaptação — são fundamentais.
Proteger territórios indígenas não é apenas uma questão de justiça histórica, mas de sobrevivência do planeta. Grandes biomas como a Amazônia estão à beira do ponto de não retorno e com risco de enormes emissões do carbono hoje estocado. A proteção dos territórios indígenas é uma das estratégias de mitigação mais eficazes disponíveis.
Também é urgente garantir que a transição climática seja justa. O Programa de Trabalho de Transição Justa, iniciado em Dubai, precisa assegurar que as medidas para reduzir emissões não reproduzam erros do passado, quando o chamado “progresso” avançava às custas de comunidades vulneráveis. Os povos indígenas não devem apenas ser ouvidos; devem ter garantido o direito ao consentimento livre, prévio e informado sobre todas as medidas que afetem seus territórios e culturas.
Uma agenda de ação urgente
O Brasil já apontou em diversos momentos que esta COP precisa apontar a implementação plena do Acordo de Paris. Para isto, estamos construindo uma Agenda de Ação vinculada ao Balanço Global. E, certamente, os Povos Indígenas também são parte fundamental das soluções imediatas desta agenda.
O financiamento continua sendo um dos temas mais complexos das negociações climáticas. Apesar de serem responsáveis diretos pela conservação de quase metade da biodiversidade ainda protegida, bem como de grande parte dos estoques e sumidouros de carbono terrestres, os povos indígenas recebem apenas uma fração mínima dos recursos destinados ao clima e à proteção da biodiversidade. Ampliar esse percentual é apostar em soluções efetivas: apoiar quem, com poucos meios, já garante resultados concretos para o equilíbrio climático.
A COP30 será histórica não apenas por ocorrer na Amazônia, mas porque pode inaugurar uma nova forma de governança climática: plural, aldeada, justa e guiada por aqueles que sempre souberam cuidar da Terra. Para frear o aquecimento global e cumprir as metas do Acordo de Paris, precisamos de ambição, ação concreta e também de um “reencantamento”, aquilo que nós mulheres indígenas no Brasil chamamos de “Reflorestarmentes” — a capacidade de ver a vida em sua plenitude e harmonia, para além das métricas e relatórios.
Belém será o lugar onde a ciência e o saber ancestral poderão caminhar lado a lado. Que a COP30 seja lembrada como o momento em que a humanidade reconheceu que os povos indígenas não são apenas parte da solução: são protagonistas do futuro que precisamos construir coletivamente.
Sonia Guajajara
Círculo dos Povos, COP30
Ministério dos Povos Indígenas, Brasil